terça-feira, 25 de agosto de 2009

Música de São Paulo 7( Uma Memória Pessoal)

Os anos de 82 a 98 passaram com rapidez imensa, hoje percebo: quando se está fazendo o que nos agrada e que rende frutos visíveis, a sensação é a de um carrossel que gira sem parar, levando-nos cada vez mais a um estado de euforia extremamente criativo, cada vez mais vertiginoso, fazendo-nos esquecer da única grande verdade que existe: no Universo vivo, a única coisa permanente é a mudança. Mudamos muita coisa no panorama da música de publicidade: o que antes era um planeta totalmente separado do planeta musical se tornou idêntico a ele, influenciando-se mutuamente, graças ao nosso desejo intenso de usar no mundo comercial as conquistas artísticas de que tínhamos conhecimento. O mundo da publicidade se enriqueceu muito com essa interpenetração de mundos, e não foram poucas as colaborações que demos a campanhas publicitárias que efetivamente mudaram o rumo da publicidade brasileira, modificando inclusive a auto-estima dos profissionais da área, subitamente elevados ao patamar que sempre haviam desejado ter. Nasce dai a confusão que os publicitários fazem entre seu ofício e a Arte, tentando ser mais do que realmente são, certamente por insegurança de seu próprio valor real.

LIdamos intensamente com os dois mundos, e ao mesmo tempo em que criamos campanhas inesquecíveis para C&A, Coca Cola, McDonalds, Chevrolet, Fiat, entre muitos outros, cedemos nossos estúdios e nosso conhecimento da área para que muitos representantes da música paulistana registrassem suas obras. Os Titãs do “iê-iê-iê”, hoje apenas TITÃS, gravaram conosco seu primeiro disco, assim como o Língua de Trapo, o Tokyo e seu cantor Supla, e Tiago Araripe, e Cida Moreyra, e Edson Alves, e a Banda Mantiqueira, e até mesmo Aracy de Almeida, para quem produzimos um show no teatro Lyra Paulistana, só para gravar este que foi o último registro de sua verve e talento. Envolvidos no mundo mutável e variadíssimo da publicidade, em que a cada dia se enfrenta desafios totalmente diversos, a memória específica se torna apenas um registro básico: de nada me recordo, naturalmente, mas ao ser citada uma obra minha certamente me lembro, com espanto, dizendo a mim mesmo: - Puxa, fui eu que fiz isso? Fomos a primeira produtora a fazer uso da nova tecnologia de computação para geração de música, e o que hoje é corriqueiro em inúmeros estúdios já foi motivo de visitas e olhos arregalados por parte dos amigos. Além de produzir dois LPs-terapia do Joelho de Porco, que além de nos aliviar a alma alugada também serviam para renovar a atenção do mercado publicitário sobre nossa criatividade, agora já aceita e até exigida pelo mesmo diretor de criação que a acusou de ser excessiva alguns anos antes, fizemos trilhas para cinema e novelas, participamos de inúmeros eventos e festivais, sempre dando nossa contribuição à tradução de São Paulo, tentando torná-la mais-que-perfeita. Casei-me, tive filhos, plantei arvores, escrevi livros, de certa maneira para não perceber a passagem do tempo e a mudança que se avizinhava.
Seu primeiro sinal foi o próprio mercado de publicidade, inchado até o ponto de quase-ruptura pelos que dele se aproximaram exclusivamente por razões materiais, o que significa a quase totalidade dos que se dedicam a esse ofício. Outro foi a mudança de postura dos clientes, finalmente entendedores do processo de ilusão a que os publicitários os vinham submetendo, e que se profissionalizaram a ponto de entender mais do negócio que os próprios publicitários. Outro sinal mais poderoso foi a profissionalização da contravenção no mercado de música, com os bandidos amadores de vinte anos antes se profissionalizando e galgando degraus inacreditáveis no comando de empresas para quem a música passou a não importar, numa analogia com o mercado de pizzas, pois para o pizzaiolo o recheio não importa, desde que ele venda a pizza que o público não consegue deixar de comprar. Empresas começaram a fechar, gravadoras começaram a não ter mais controle sobre seus produtos, e eu via isso com crescente espanto, e muita preocupação. O sentimento de que os ventos da mudança começavam a soprar, e a perplexidade de ser aparentemente o único que percebia isso, já que os outros que também sentiam isso não tocavam no assunto, fazendo-o desaparecer ao esconder a cabeça na areia, foi-me gerando imensa preocupação. Infelizmente, não apenas em mim.



Uma quinta feira de Julho de 1998, depois de um jogo do Brasil na Copa do Mundo, meu sócio, irmão, amigo Tico Terpins pôs a mão no peito e morreu.
Ficar sem o amigo de tantos anos, minha referência em matéria de publicidade, música e vida, não foi fácil: o que me sustentou foi a beleza de São Paulo, e os outros amigos que venho fazendo nesse tempo todo, sinceros e verdadeiros. Em todo o caso, já que a mudança se apresentara, resolvi encará-la sem medo e me atirei de volta a coisas que não fazia desde quase 20 anos atrás: aceitei a proposta de meus antigos parceiros Sá e Guarabyra e reativamos nosso trio. Nossa reestréia se deu no Rock’in’Rio, mas foi em São Paulo que gravamos nosso CD/DVD, chamado OUTRA VEZ NA ESTRADA, perpetuado para a posteridade no palco do Teatro Mars, como prova cabal de mais um reinício.


Tenho o vício do reinício constante: a qualquer momento em que algo termine, com um estrondo ou um sussurro, eu já ponho o pé no caminho novo que se me apresenta à frente. não sei se é a São Paulo que não pode parar que me faz ser assim, da maneira como está enraizada em meu próprio ser. Mas a cada instante que passa surgem novas opções, e a música de São Paulo, que tem o saudável hábito de fingir-se de morta quando as condições históricas não lhe são agradáveis, pôs novamente de fora sua bela cabeça, de um jeito inesperado e nada sutil, quando fui convidado a comparecer a um clube de compositores que se reúne em um bar de Perdizes, mais exatamente na Rua Caiubi, 420.

A partir de uma certa idade, as homenagens são sempre agradáveis, e a gente não consegue perde-las. Pois essa resultou em imenso e inesperado prazer: nesse dia conheci uma nova e criativíssima geração de compositores completamente livres das velhas leis de mercado, da equivocada arte de massa, de ideologias-como-camisas-de-força, do abandono da Arte como forma de ganhar o próprio sustento. Em um período de duas horas, não mais, ouvi pelo menos 20 músicas fenomenalmente bem feitas, daquelas que cutucam a nossa emoção por dentro e não nos deixam espaço para racionalizar o que elas nos causam. A música de São Paulo, que me parecia morta, estava vivíssima, atuante, dando claros sinais de uso positivo da mudança que a gerara, Passei a freqüenta-los, a me abismar com sua forma de trabalhar, acabando por tornar-me curador de seu movimento, que tem dado bons e deliciosos frutos. Além disso, vejo a cada dia surgirem novos compositores e intérpretes, uma realidade muito parecida com a que eu vivi em meus tempos de pré-profissional, onde a alegria de estar a serviço da arte que se traz no coração é mais importante que tudo.

Como era de se esperar, a música de São Paulo, aqui do meu ponto de vista, renasce a cada instante, apoiando-se nos ombros dos gigantes que a fizeram para subir cada vez mais em direção as estrelas. Ou melhor: a música de São Paulo é como o Monumento das Bandeiras, de Victor Brecheret, ali em pleno Ibirapuera. O barco há de seguir, e se tem quem o puxe também tem quem o empurre, porque o trabalho conjunto é feito por todos, cada um de seu jeito. O barco tem que seguir sempre em frente, desbravando o futuro, apontando sua proa para o desconhecido que causa menos temor do que desejo. Os remadores que já não estão mais entre nos, e que em meu peito têm as caras de Torquato Neto, Elis Regina, Tico Terpins, seguem conosco, porque só desaparecem aqueles de quem não nos lembramos mais, e esses três, pelos motivos mais óbvios, têm a cara do futuro, que nunca é incerto: incerto é apenas o que ele nos trará, e por isso mesmo fascinante.

Vi o que vi, e só falo do que vi, vivi e experimentei: em meu peito, contudo permanece a grande ansiedade pelo que virá na próxima curva, no próximo dia, no próximo século. A música de cada época comporta imensas variações, seja por obra da evolução seja por obra da transformação, e seria equivoco julgá-la com base no critério que estiver atualmente imperando, pois este é apenas uma fase histórica mais ou menos duradoura, e que inevitavelmente desaparecerá algum dia, como já desapareceram as tantas que a antecederam, deixando o caminho livre para uma outra fase onde haverá outro critério completamente diverso, que nenhum de nós é hoje capaz de pressentir qual será. E nesse dia certamente surgirá alguém como eu que, com a mesma emoção à flor da pele, diga do que viu e viveu: - Meninos, eu vi!
Zé Rodrix



:::FIM:::

2 comentários:

  1. "É no silêncio de um Chevrolet que o meu coração bate mais alto"..."Preso nessa cela, de ossos, carne e sangue"...estas obras primas, de uma pessoa verdadeiramente abençoada por Deus, não me saem da cabeça.
    Meu imenso respeito por ele e pela sua família.
    Estou acabado!!!
    Roberto S. Chrysostomo

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  2. Estou inconformado com a partida do meu irmão. Tenho que encontrar um meio de superar isto, e, certamente, deverei conseguir.
    À família do nosso Zé Rodrix, meus sinceros e tristes (ainda) sentimentos.
    Abraços a todos aqueles que reconheceram nele um VERDADEIRO talento.
    Roberto S. Chrysostomo

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